B’RESHIT é a primeira palavra das Escrituras Hebraicas e também o nome do seu primeiro compêndio. O que na Torá tem esse nome, na nossa Bíblia é conhecido como Gênesis. Seu significado mais difundido: “No Princípio”, é a expressão que originalmente nomeia o primeiro livro do Pentateuco.
A teologia da criação começa com essa palavra. Uma análise
semântica do termo B’RESHIT, tem por si só, o poder de elucidar o motivo de ser
da criação do Universo. A partir do estudo de apenas esse vocábulo, somos
convidados a pensar o contexto bíblico de forma semelhante a Santo Agostinho,
que dizia: “No Antigo
Testamento o Novo repousa oculto; no Novo Testamento, o significado do Antigo
torna-se claro”.
Uma análise da palavra B’RESHIT, apenas na esfera do Antigo
Testamento é um desperdício de sabedoria! Sem uma análise bíblica contextual,
envolvendo também os escritos do Novo Testamento, torna impossível trazer ao
palco a decodificação da complexidade teológica do termo. O que aqui afirmamos
é que B’RESHIT tem muito mais a dizer do que somente aquilo que estamos
comumente habituados a ouvir. Todavia, para exaurirmos o máximo da primeira
palavra do Gênesis devemos tomar como texto base as exegeses do Novo
Testamento, onde a Bíblia explica a Bíblia, esclarecendo definitivamente os
mistérios do termo Hebraico.
Ao desvendar o motivo do uso de parábolas em suas preleções, Jesus
disse a seus discípulos que falava daquela maneira “Para
que se cumprisse o que fora dito pelo profeta: Abrirei em parábolas a minha
boca; Publicarei coisas ocultas desde a fundação do mundo” (Mt 13:35).
Note que em cumprimento ao ministério de Mestre, Jesus afirmou que veio
publicar “coisas
ocultas desde a criação”. Essa revelação é um facho de luz apontando para o texto de
B’RESHIT. Quando afirma que veio revelar
“coisas ocultas” ou mistérios profundos que ainda estavam em segredo,
aguardando por sua vinda, Jesus concorda que a revelação de Deus é progressiva,
e que a compreensão humana também o é.
Realmente, o texto do Antigo Testamento se reconhece como uma
revelação incompleta e provisória, deixando implícito principalmente do texto
profético, a necessidade da vinda do Messias para que as Escrituras antigas
fossem finalmente decifradas. “O espírito do
Senhor Deus está sobre mim; porque o Senhor me ungiu, para pregar boas novas
aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar
liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos presos; a apregoar o ano
aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os
tristes; a ordenar acerca dos tristes de Sião que se lhes dê glória em vez de
cinza, óleo de gozo em vez de tristeza, vestes de louvor em vez de espírito
angustiado; a fim de que se chamem árvores de justiça, plantações do Senhor,
para que Ele seja glorificado” (Is 61:1-3). O próprio Jesus
anuncia o cumprimento dessa profecia em Si mesmo: “Então
ele fechou o livro, devolveu-o ao assistente e assentou-se. Na sinagoga todos
tinham os olhos fitos nele; e ele começou a dizer-lhes: "Hoje se cumpriu a
Escritura que vocês acabaram de ouvir" (Lc
4:20,21).
Conforme dito pelo Apóstolo Paulo, na “plenitude
dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei” (Gl 4:4),
para trazer ao mundo a plena revelação do seu propósito que é o de concretizar
o cumprimento da promessa feita aos patriarcas. O escritor de Hebreus alude ao
fato de “haver Deus
provido coisa superior” (Hb 11.40) através de uma Nova Aliança, objetivando o
aperfeiçoamento dos primitivos rudimentos da Aliança Antiga.
B’RESHIT (בְּרֵאשִׁית) é formada pela preposição prefixa B’ (ת)
seguida pelo substantivo RESHIT. As terminações IT e UT formam conceitos
substantivos abstratos a partir de conceitos substantivos concretos. RESHIT é
um substantivo abstrato do substantivo concreto que é ROSH. Dessa forma, ROSH é
um morfema, ou seja, a menor unidade linguística possuidora de significado, e
que, pelo acréscimo da terminação IT, forma a palavra RESHIT.
Outro fato importante é perceber a falta do artigo na construção
da palavra hebraica. Na língua portuguesa, ‘artigo’ é uma palavra que se
antepõe ao substantivo e serve para determiná-lo, de forma definida ou
indefinida, sendo que os ‘artigos definidos’ sempre são as palavras
independentes: o, a, os, as, que determinam o substantivo com precisão. Já os
artigos indefinidos são: ‘um, uma, uns, umas’, que determinam imprecisamente o
substantivo.
Diferente do português, no hebraico o artigo nunca aparece como
palavra autônoma independente. Ele
sempre está afixado dentro da palavra substantiva. Perceba que se o artigo
estivesse incluído na palavra B’RESHIT, a construção da palavra seria BARESHIT.
A ausência do artigo presente na palavra B’RESHIT aponta um norte para o
entendimento desse termo, tornando-o muito especial para a Cristologia. Não
limitado a isso, B’RESHIT se torna ainda mais especial quando percebemos que
seu uso no texto faz parte de uma formação de frase única nas Escrituras:
B’RESHIT BARA’ ELOHIM, que literalmente deve ser traduzido por: “Em princípio criou Deus”. A tradução
dessa oração nos é comumente apresentada como: “No
princípio criou Deus”, mas não é assim que sugere esse grupo de palavras, afinal a
palavra do texto original é B’RESHIT e não BARESHIT. O correto é o uso do ‘EM’
em detrimento do ‘NO’.
BARA é um verbo hebraico de significado singular! Ele é empregado
exclusivamente para designar os atos de Deus na criação, e nunca para outra
finalidade que não seja os atos criativos do Eterno. Finalmente a palavra
ELOHIM significa ‘Deus’, todavia no plural, sendo uma menção clara à unidade da
Santíssima Trindade.
Em uma de suas possíveis traduções, a frase B’RESHIT BARA’ ELOHIM
significa literalmente: “Em princípio a Santíssima Trindade criou...”. Todavia,
como veremos adiante, essa fração de Gênesis esconde ainda muito mais conteúdo
abaixo da superfície das palavras.
Comecemos pelos significados da palavra ROSH, que é o étimo de
RESHIT.
a- Cabeça de homem ou de
animal, chefe, líder; metrópole, cidade líder, topo de montanha;
b- Primeiro, principal de
alguma coisa, plenitude.
Se substituirmos cada um dos significados das palavras na tradução
do texto, chegaremos a resultados fascinantes. Vejamos:
a- “Em Cabeça de Homem criou Deus” – uma
referência clara ao mentor da criação do Universo e uma alusão direta a Cristo
que é, enquanto Filho do Homem, aquele que detém o título de Cabeça da Igreja
(Ef 5.23).
b- “Em Primeiro criou Deus” – uma
referência a Jesus que é o primogênito de toda a criação (Cl 1.15).
Os demais sinônimos da palavra serviriam igualmente para descrever
a personalidade, a missão e a pessoa do Messias profetizado e o Cristo,
encarnado Filho de Deus, na pessoa histórica de Jesus de Nazaré. Ele é o
‘Chefe’, o ‘Líder’ e assim é chamado pelo título de “Rei
dos Reis e Senhor dos Senhores” (Ap 19.16). Ele é a ‘Metrópole e
Cidade Viva’, onde cada um de seus discípulos se torna uma pedra viva na
construção: “Chegando-vos para Ele, pedra viva, reprovada, na verdade, pelos
homens, mas para com Deus eleita e preciosa, vós também, como pedras vivas,
sois edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios
espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo” (1Pd 2:4,5).
Ele é o ‘Topo da Montanha’, o lugar místico onde o fiel se
encontra com o Deus Vivo. Perceba que em toda a Bíblia os homens que tiveram um
profundo encontro com Deus fizeram isso no topo de uma montanha. Após a
travessia do Mar Vermelho, Moisés se encontra com Deus no Topo do Sinai. Antes
disso, o quase sacrifício de Isaque também ocorreu no topo de uma montanha, em
Moriá. Elias desafiou os profetas de Baal no Monte Carmelo enquanto Jesus foi
tentado no Monte Quarantânia e se transfigurou diante de Pedro, Tiago e João no
Monte Tabor. Sempre existe uma montanha como palco dos eventos mais definitivos
da vida dos grandes homens de Deus. Simbolicamente a Montanha é uma figura do
próprio Filho de Deus, pois é Nele que temos a possibilidade de nos
encontrarmos profundamente com o Criador do Universo. Não é mais em um monte
físico! Na dispensação da graça, o encontro acontece mediado pelo Filho de Deus
(1Tm 2.5), a nossa Montanha, nosso ponto de encontro com o Eterno.
Agora vejamos a palavra RESHIT:
a- Primeiro;
b- Autor em condição,
posição, dignidade ou autoridade;
c- Primeiros frutos,
primogênito;
d- Princípio.
Pelo fato de ROSH ser a palavra original, alguns significados se
repetem. Usando o mesmo método anterior podemos encontrar essas possíveis
traduções:
a- “Em Autor criou Deus” – uma menção ao Autor e
Consumador da nossa fé (Hb 12.2).
b- “Em Princípio criou Deus” – onde a
palavra princípio excede o significado temporal, passando a ser uma força, um
princípio ativo de onde todo o poder emana.
Os rabinos judeus não são unânimes quanto ao significado de
B’RESHIT, e isso é realmente o esperado, afinal eles não possuem a ferramenta
no Novo Testamento, nem aceitam a Cristo como o Messias que haveria de vir.
Devido a isso, a exegese rabínica não possui elementos para concluir a
interpretação do termo.
Herbert Edward Ryle, importante estudioso do Antigo Testamento nos
oferece um caminho interessante! Segundo ele, a ausência do artigo na palavra
B’REESHIT, dá uma significação indefinida ao contexto de Gênesis 1:1: “No princípio” sugere uma ideia temporal, referindo-se ao ‘início do tempo’.
Todavia se trocarmos o “No
princípio” e usarmos a literalidade da tradução: “Em princípio”, a ideia de
temporalidade desaparece, deixando a oração em aberto, podendo ser uma
referência tanto quanto ao tempo, ou quanto a qualquer outra coisa.
O Apóstolo João toma essa discussão em seus escritos do Novo
Testamento em vários dos seus textos.
“NO PRINCÍPIO era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo
era Deus (Jo 1:1); “E me disse
mais: ‘Está cumprido. Eu sou o Alfa e o Ômega, O PRINCÍPIO e o fim. A quem
sentir sede, de graça lhe darei da fonte da água da vida’” (Ap 21:6). A
intenção de João é clara! O Apóstolo intenciona deixar explícito uma
Cristologia consistente com os eventos da criação.
A abertura do quarto Evangelho é visivelmente um plagio
intencional da abertura do primeiro livro da Torá. Em seu texto, João usa a
mesma estrutura textual utilizada por Moisés: começando pelo “princípio” para logo em seguida referir-se à luz e finalmente à palavra
criadora. Segundo João, Jesus é “o princípio” da criação,
conforme o Gênesis, e mais! Jesus também é o agente da nova criação. Ele é o
Senhor do Tempo, mas também é Senhor dos Senhores, atuante sobre coisas e
pessoas.
A exegese de João abre nossos olhos para perceber que Jesus é o
mentor e principal agente criador em Gênesis, entretanto é com a exegese
paulina que chegamos definitivamente ao significado de B’RESHIT.
Nesse texto escrito aos santos da igreja de Colossos, Paulo
desejava que definitivamente, Jesus Cristo fosse compreendido como Deus
Soberano sobre todas as coisas e que aqueles crentes abdicassem de suas
superstições religiosas.
A exegese rabínica realizada pelo apóstolo Paulo está presente no
texto de Colossenses 1:15-19. Paulo tomou uma única palavra e aproveitou dela
todos os seus significados e aplicou cada um desses significados a Jesus,
mostrando que o B’RESHIT é mais que uma referência temporal. Para o Apóstolo
dos Gentios B’RESHIT é uma pessoa!
Esse tipo de exegese usada pelos autores do Novo Testamento não é
uma exceção. Pelo contrário, esse método interpretativo sempre foi muito usado
pelos rabinos e pelos mestres judeus. João e Paulo o conheciam muito bem!
“O qual é
imagem do Deus invisível, o PRIMOGÊNITO de toda a criação; porque Nele
foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e
invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam
potestades. Tudo foi criado por Ele e para Ele. Ele é antes de todas as coisas,
e todas as coisas subsistem por Ele. Ele é a CABEÇA do corpo, da igreja;
é o PRINCÍPIO e o PRIMOGÊNITO dentre os mortos, para que em tudo
seja PREEMINENTE. Porque foi do agrado do Pai que toda a PLENITUDE
Nele habitasse” (Cl 1.15-19).
Os sentidos de ‘autor’, ‘dignidade’, ‘autoridade’, ‘chefe’, estão
presentes no espírito do texto, mostrando que Paulo não se esqueceu de nada.
Inclusive quando menciona que “Nele foram
criadas todas as coisas”, o sentido é o de uma imensa metrópole onde “todas as coisas, visíveis e invisíveis” foram
criadas e continuam “subsistindo
por Ele”.
Há também uma menção subliminar acerca do Calvário, o Monte da
Crucificação. Quando Paulo escreve que Ele é “o primogênito dentre os mortos”,
essa é uma inteligente menção ao ‘topo da montanha’ – o Gólgota, lugar onde
Jesus consumou a obra de sua vida.
Todos os significados que apresentamos para as palavras ROSH e
RESHIT, Paulo aplica ao texto de Colossenses, intencionando definir a Cristo a
partir de todos os predicados da palavra B’RESHIT.
O Apóstolo dos Gentios transferiu para Cristo todas as
prerrogativas do Deus Criador. Ao explicar a força motora da criação, Paulo
afirma que Jesus é a fonte de todo poder e que todas as hierarquias superiores,
“sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades”, estão sob
sua majestade.
A redenção de uma nova humanidade foi efetivada “por Ele e Nele”. Ele é o Senhor! Sua primazia
sobre a criação se evidencia na forma de uma irrefutável soberania sobre tudo e
sobre todos.
João e Paulo estão certos de que B’RESHIT significa “em Cristo”.
Para os maiores escritores do Novo Testamento, Gênesis 1:1 deve
ser lido assim:
“Em Cristo criou Deus os céus e a terra”.