Schoppenhauer afirmava que as principais ferramentas do Véu da Realidade
são o Amor e a Moral. O Amor porque sentimos a necessidade de levar adiante a
perpetuação da raça humana. A Moral, porque existe uma abordagem cultural no
sentido de tentar colocar nossos pés no chão.
Nascemos com os pés nas nuvens, tão longe da fantasia da ‘realidade’.
A Moral atua nos puxando para a ‘suposta realidade’, nos obrigando pouco
a pouco a se comprometer com o ‘mundo real’; a tratar das coisas da vida.
A Moral é quem diz: ‘abra seus olhos e não se embaralhe no mundo dos
sonhos’.
Os adultos deveriam aprender com as crianças! Um profeta sintetizou essa
pedagogia, tão inversa à forma de como caminha a humanidade: “E um menino pequeno vos guiará” (Is
11:6).
As crianças enxergam melhor que os adultos porque ainda não deu tempo de
serem engolidas pela roda viva da realidade.
Ser adulto é ser um cego funcional.
O Reino dos Céus, a superfície do Lago das Águas Primordiais pertence às
crianças: “Deixai vir a mim os meninos, e
não os impeçais, porque dos tais é o reino de Deus” (Lc 18:16).
Para Schoppenhauer tudo é mundo dos sonhos, afinal, todas as coisas
estão sob a espessura do Véu da Realidade.
O Véu se torna cada vez mais espesso na medida em que nos afastamos da
criança primordial.
Porque nos tornamos adultos, com noções cada vez mais profundas de Amor
e Moralidade, é que estamos fadados a dependermos do Véu de Maya para
suportarmos o peso da existência.
A CORAGEM DE
SER SOB O VÉU
“Achamos que somos mestres do
mundo e de nós mesmos. Mas, na verdade, fazemos parte da realidade que criamos,
objetos entre objetos, coisas entre coisas, parte da engrenagem da máquina
universal, à qual devemos nos adaptar para que ela não nos esmague. Essa
adaptação nos transforma em meios para fins que também, por sua vez, são meios,
sem finalidade alguma” (Paul
Tillich).
O ser humano foi e continua sendo alfabetizado pela roda viva da
realidade. Todo ser humano possui a vontade de se impor como ser individual
ante seu próximo. Motivados por essa vontade, enfrentam as adversidades da vida
procurando seu momento de glória, de conquista, os cinco minutos de fama. Todos
procuram a possibilidade de “ser”, e de encontrar sentido para a própria
existência. Essa força de vontade (a vontade de ser), é a ‘mãe’ da ‘coragem de
ser’.
Friedrich Nietzsche usou um conceito para descrever a principal força
motriz em seres humanos: a Vontade de Poder ou Vontade de Potência, que na
interpretação do filósofo seria a realização, a ambição e o esforço para se
alcançar a posição mais alta possível na escadaria da vida.
O Véu da Realidade apresenta sua cartilha e os alunos sob o Véu aprendem
a ‘ler’ a realidade a partir da lógica do consumo. A auto-afirmação é buscada na escravidão do
“ter”, e é a partir da lógica do consumo que os comportamentos são modelados
sob o Véu.
Pela abordagem capitalista o homem passa enxergar o mundo por outra
lente, e pela influência dessa visão de mundo, ele remodela seu comportamento.
O bombardeio das propagandas comerciais escreve novos conceitos para se viver
em sociedade.
Segundo o publicitário brasileiro Nizan Guanaes: “Nike é um estilo e uma visão de mundo”. Nesse texto de Guanaes, a
“Nike” é tomada como exemplo para expressar a escravidão da moda e do consumo.
Tudo aquilo que se torna objeto do desejo de todos, passa a ser mais que
uma forma de se sentir bem, mas uma condição preliminar para se pertencer à
sociedade humana.
Quem compra um ‘Nike’, não compra um tênis; nesse sentido quem compra um
‘Nike’, não está necessariamente preocupado com o conforto dos pés, mas sim,
estão buscando encontrar o ‘Ser’. “Eu
tenho raiva do mundo, Eu tenho raiva de mim. Eu tenho raiva de tudo, tudo o que
eu não posso ter” (Herbert Viana, na música Carro Velho).
A motivação da vida deixa de ser a evolução do espírito e se torna uma
corrida rumo ao pódio do reconhecimento por aquilo que se tem.
“O que mais me surpreende na vida
é o homem, pois perde a saúde para juntar dinheiro, depois perde o dinheiro
para recuperar a saúde. Vive pensando ansiosamente no futuro, de tal forma que
acaba por não viver nem o presente, nem o futuro. Vive como se nunca fosse
morrer e morre como se nunca tivesse vivido” (Dalai Lama).
As coisas perdem seu sentido material e se revestem de individualidade.
O homem passa ser definido pelo carro que possui, o adolescente passa a ser
definido pelo modelo de celular que usa e a mulher passa a nortear seu
comportamento pela ditadura da moda.
O que era para ser apenas algo que representasse uma forma de se
locomover, se comunicar e se vestir, passa a ser mais que isso. As coisas se
tornam algo maior. Transformam-se em algo que possibilita o reconhecimento
pessoal nas relações com aqueles que vivem sob o mesmo tabu.
O ‘Ter’ se torna a premissa fundamental do ‘Ser’.
Desgraçadamente o ser humano se torna uma coisa, e as coisas se revestem
de ‘humanidade’ numa esmagadora interpretação da realidade.
Essa é a definição de Véu de Maya na filosofia de Paul Tillich: a
realidade sendo percebida a partir de uma lógica onde tudo se define pela
ditadura do ‘Ter’ em detrimento do ‘Ser’. Coisas passam a ter mais valor que
pessoas.
Numa sociedade cristã, onde os princípios mais elementares do
Cristianismo deveriam ser empregados, somos surpreendidos por comportamentos
absurdamente profanos.
A igreja local, copiando o mundanismo também passa a pautar seu
comportamento pela lógica do consumo e por isso vivem sob o grosso véu da
ilusão; pensam que estão adorando a Deus construindo suntuosos templos, mas não
estão. Quase sempre preferem reformar as paredes do local de reunião, ou instalar
novos aparelhos de ar condicionado, ou trocar o acolchoado das cadeiras em
detrimento de ajudar irmãos de fé, que em dificuldade financeira necessitam de
uma peça de roupa, ou de financiar a educação escolar do filho, ou mesmo de
alimentar o estômago. A cadeira nova se
torna mais importante que uma lata de leite em pó.
Coisificam pessoas enquanto personificam coisas.
O caráter do cristão fica adoecido em função da incompetência de se
enxergar de forma metafísica a realidade além do Véu.
Os que deveriam ser santos são transformados em mundanos: fazem a
vontade do espírito desse século, enquanto enganosamente pensam que estão
fazendo a vontade de Deus.
“O homem para quem tudo isso foi
inventado como meio, tornou-se um meio ele próprio, a serviço dos meios” (Paul Tillich).
Para Tillich, a auto-afirmação a partir do princípio dos Evangelhos é o
poder que torna possível a autoafirmação do ser humano.
Somente um ato de fé é capaz de arrebatar o homem das correntes que o
prendem: “Ser como uma parte em tal
igreja é receber uma coragem de ser, na qual podemos perder nosso eu, e na qual
recebemos nosso mundo”.
Perdendo o eu, ou seja, anulando o egoísmo, o homem se habilita a
receber o ‘nosso mundo’: o mundo real, que pode ser apreciado além do véu da
realidade.
teolovida@gmail.com
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